O GRITO

Há muitos anos, fazendo um filme no interior de Minas, conheci um usineiro que, praticamente, era o dono da cidade. Era tão rico que tinha uma ferrovia própria cortando suas terras, para transportar somente seus produtos. Tudo girava em torno dele: das grande usinas às pequenas industrias, comércios, política, etc., etc.
Era uma pessoa misteriosa. Desde que sofrera um acidente de carro, suas pernas ficaram paralisadas e o prenderam a uma cadeira de rodas. Nunca era visto numa rua, num clube, num leilão, mas… todas as tardes, num grande carro importado, adaptado à sua condição, ia para uma colina de onde olhava a cidade, sua cidade, suas fazendas… e bebia, bebia até ficar completamente bêbado. E então… gritava. Gritava um grito tão estranho, tão alto, que toda a região parecia ficar em silêncio profundo de medo ou respeito.
Uma noite, em busca de um pouco de paz, estacionei meu velho fusca no início da colina onde ele estava e ouvi seu grito. Senti uma sensação estranha, fiquei arrepiado. Em minha cabeça de jovem, em minhas fantasias, pensei no Capitão Ahab gritando na solidão do oceano, amaldiçoando Moby Dick. Pensei no grito de Tarzan, voando em seus cipós à procura de algum amor, antes de Jane. Pensei nos gritos que eu, adolescente, tive que calar para não ser chamado de louco. Para não ser ainda mais isolado em minha solidão numa também pequena cidade do interior.
Mas o grito daquele homem era real. Era um som confuso de quem procurava, com desespero, entender por que não podia modificar sua condição de prisioneiro numa cadeira de rodas. Era o grito de alguém que perdera sua alma
“Onde, com quem ele buscava o entendimento? Pra quem ele grita, esperando uma salvação?”, me indaguei e não obtive resposta. Eu era muito jovem e não compreendi que ele gritava para a terra, para os canaviais, para as montanhas distantes que eram suas nas escrituras lavradas em cartórios, mas que ele não possuía… Sim, ele gritava porque percebera que nada daquilo pertencia a ele. E percebendo isto encontrara um grande vazio e gritava, talvez querendo dizer: “Eu não pertenço a vocês, vocês não me pertencem. Eu não posso colocar meus pés no chão, sentir o calor da terra. Não posso caminhar pelos caminhos que vejo, não posso me curvar para beber numa fonte, não posso correr para abraçar uma criança, não posso andar ao encontro de uma mulher… eu troquei minha vida para ter vocês, mas não tenho vocês. E não tenho nada…”
Saí daquele lugar com uma grande tristeza no coração e nunca mais volte. Mas aquele grito me acompanhou, em sua angústia áspera, em seu desespero…
Durante muito tempo em minha infância e adolescência, eu também fui um prisioneiro, como são prisioneiras todas as crianças a quem falta o pão e o afeto. Mas logo senti que podia escapar. E, adolescente, fui para as ruas pra não mais sair. Num mundo violento, para não apanhar, treinei lutas em ringues mambembes e aprendi que só eu podia ser minha defesa. Eu era meu rodamoinho e minha boia de salvação. À noite, me enfurnava nas salas de cinema, mergulhava em vidas fictícias para fugir à realidade. Quando as luzes se acendiam, voltava ao caos e me angustiava. Era um andarilho que não sabia para onde ir, mas que precisava ir… ir… ir…
Salto no tempo e agora, aqui na Serra da Cantareira, torno a ouvir os gritos, vindos da cidade distante. São gritos desesperados de seres humanos que se paralisaram numa solidão vazia. Serão diferentes daqueles que ouvi naquela pequena colina mineira? Não sei. Mas, sozinho na estrada onde moro, penso que são gritos de angústia e esperança, de amores encontrados e de amores contrariados, de tristeza e de alegrias… Ouço, mas não vejo os Seres que gritam. Seres que estão num palco onde a cortina ainda não se abriu… e por um instante percebo que somos apenas personagens de nós mesmo, gritando um monólogo incompreensível. E gritamos cada vez mais alto… mas não escutamos.
Estamos surdos.

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